domingo, 20 de março de 2011

Avó apaixonada







Conheço-a desde sempre e ela a mim... há já uns bons anos... uma vizinhança pautada por exemplar discrição não fossem uns desabafos meus (se bem que esporádicos) menos simpáticos a seu respeito... sim... ninguém gosta de limpar desperdícios dos outros...
Deparo-me com ela mal abro a janela pela manhã e lá se mantém até à hora em que me despeço da rua até ao dia seguinte...
Alta, robusta, ainda muito direita e viçosa... Faz inveja a todo o bairro!
Apesar da sua idade avançada, ainda não é indiferente a qualquer passeante por mais distraído que possa parecer; impõe-se fatalmente pela sua ímpar estatura e sobretudo quando se faz cheirar o seu perfume tão intenso, mas tão doce e sedutor!... É estonteante, arrebatador, de impossível disfarce...
É sempre imponente mas à noite, quando o sol já se foi e a lua e as estrelas já se instalaram, capricha-se, reveste-se de um aroma mágico, convidando qualquer noctívago a quedar-se junto de si, a contemplá-la e a tecer-lhe os maiores elogios... eu própria sou tentada a gastar os últimos minutos do dia a reconfortar-me sofregamente com o seu tão relaxante e especial perfume.
Sou uma verdadeira apaixonada por este exemplar da natureza!...
Tem um nome esquisito... mas para mim é a dama da noite do meu jardim...
E o meu vestidinho também não merece ser contemplado e receber uns elogiozitos?
Aconselho vivamente esta combinação de cores - cinzento escuro e rosa clarinho...

quarta-feira, 2 de março de 2011

Avó intrigada









Passo semanalmente pela aquela rua lúgubre, de chão arriscadamente escorregadio, onde ao sol nunca foi permitida uma mesmo que fugaz visita e o cenário é invariavelmente constante... andará pelos 50 anos aquela mulher de aspecto modesto, asseada, com o cabelo irrepeensivelmente arranjado, sentada na soleira de uma porta já muito gasta pelo tempo com uma tão desusada e estranha mercadoria? à sua frente: são uns elásticos descorados, umas linhas já muito debotadas, uma roupa interior de tamanhos extravagantes, insólitos... uma misturada nada apelativa aos poucos passeantes que por ali ainda circulam.
Desço e, quando passado algum tempo subo a tão funesta ladeira, os tarecos lá permanecem intactos; apesar de velhos, bafientos não são, arejam durante todo o horário do comércio tradicional à excepção de uma ou outra chuvada... aí são resguardados por uns plásticos remediados à medida e para o efeito.
A todo este quadro já de si destoante, acresce a forma obstinada como aquela vendedeira que não vende, aparentemente tranquila e conformada com o negócio, se entrega às suas inseparáveis leituras... não, não são revistas cor de rosa... livros dos mais clássicos aos mais contemporâneos de autores de renome nacional e internacional, manchetes das vitrinas das melhores e mais conceituadas livrarias!!! Simplesmente desconcertante!...
Esta sua paixão apenas é suspensa quando uns passos mais ruidosos se aproximam e se fazem ouvir; então, ergue os olhos por cima dos óculos, dá uma espreitadela não vá perder a ocasião do dia... infelizmente era mais um alguém que passava como "cão por vinha vindimada" ... perdida mais uma esperança, calma e pacificamente retoma a sua erudição...
Estou certa que, se os meus miminhos substituíssem toda aquela quinquilharia, o negócio mudava... ganhava-se um certo colorido, alguma alegria e animação, uma vida diferente, mais desafogada... mas perdia-se indubitavelmente uma acérrima leitora!... Histórias de vida!...